sábado, agosto 21

Trabalhando com crônica


Da Olivetti ao torpedo


            Vai fazer 30 Natais que eu ganhei meu presente mais inesquecível. Não, não foi uma bicicleta. Foi uma máquina de escrever portátil Olivetti, modelo Lettera 22, verdinha. Vinha com uma tampa de plástico, que ao ser encaixada se transformava numa maleta. Mal abri o brinquedinho, já fui pedindo: "Quero fazer o curso".
            Alguém aí pode explicar o que leva uma criança de 10 anos a pedir um curso de datilografia para seus pais? Hoje em dia é evidente que eu seria encaminhado a um bom psicólogo infantil  __  mas naquele tempo meu pai me inscreveu num curso, e pronto. Eu era o único aluno que não estava interessado em procurar emprego de auxiliar de escritório. Mesmo sem força suficiente no mindinho esquerdo para dar conta da tecla "a", confesso que adorei. Foi amor ao primeiro asdfgçlkjh. Totalmente caxias, eu jamais olhava para as teclas. Rapidinho tornei-me um avião. Lá pelo fim do curso, fazia fácil 200 toques por minuto. Se não desse para ser escritor, já dava muito bem para ser escrivão.
            Na 8ª série, tive a felicidade de entrar para um colégio cujo currículo incluía... datilografia. Na aula inaugural, o professor pediu que todos os alunos batessem seus nomes à máquina. Deixei que a turma começasse: um "tlec" solitário aqui, um "tlec" sem convicção ali, outro "tlec" desafinado acolá.  Então respirei fundo. E mandei ver: ratatatatatatatatatatatatatatá! Todas as cabeças da sala se voltaram ao mesmo tempo na minha direção. Nunca mais viverei outro momento tão glorioso.
            Nunca mais, mesmo. Depois de reinar por de 100 anos, o teclado __ que foi inventado em 1880, não pela Olivetti, mas pela Remington __ está com os dias contados. A máquina de escrever das crianças de 10 anos deste século não é nem mesmo o computador: é o celular. Crianças e adolescentes passam horas travando diálogos por escrito, como se estivessem jogando videogame.
            Você já tentou escrever um torpedo no celular? Eu tentei. Semana passada, para ser mais preciso. As 26 letras do alfabeto se escondem em apenas 9 teclazinhas. Levei cinco minutos para digitar quatro palavras __ e estou até agora tentando achar onde fica o ponto de interrogação. Se você souber de algum curso de datilografia-em-telefone, por favor me avise.
            Os celulares possuem poucas teclas porque na verdade quem escreve neles não tem lá muito amor pelas letrinhas. Tudo é abreviado. As vogais somem. Os acentos vão pro beleléu. Além de aprender a digitar, você tem que reaprender a escrever.
            De nada adianta ter evoluído das Olivettis e Remingtons para os PCs e Macs, se a gente não conseguir agora se adaptar ao celular. Caso tudo o que os fabricantes prometem acabe um dia se realizando, o celular vai tomar o lugar do computador, da máquina fotográfica, do cartão de crédito, da carteira de identidade e da chave de casa. Isso, claro, para quem aprender a mexer nele. Se eu não consigo achar nem o ponto de interrogação, como eu vou descobrir a função que abre o portão da garagem?


Ricardo  Frerei.Revista Época ,Xongas, pág.122.Sao Paulo ,Globo 24 de novembro de 2003

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