segunda-feira, julho 19

sexta-feira, julho 16

Poema

Tem tudo a ver
Elias José
A poesia
tem tudo a ver
com tua dor e alegrias,
com as cores, as formas, os cheiros,
os sabores e a música
do mundo.

A poesia
tem tudo a ver
com o sorriso da criança,
o diálogo dos namorados,
as lágrimas diante da morte,
os olhos pedindo pão.
A poesia
tem tudo a ver
com a plumagem, o voo,
e o canto dos pássaros,
a veloz acrobacia dos peixes,
as cores todas do arco-íris,
o ritmo dos rios e cachoeiras,
o brilho da lua, do sol e das estrelas,
a explosão em verde, em flores e frutos.

A poesia
― é só abrir os olhos e ver ―
tem tudo a ver
com tudo.
Segredinhos de amor. 2ª ed. São Paulo: Moderna, 2002

Memória Literária


Os automóveis invadem a cidade
Zélia Gattai
Naqueles tempos, a vida em São Paulo era tranquila. Poderia ser ainda mais, não fosse a invasão cada vez maior dos automóveis importados, circulando pelas ruas da cidade; grossos tubos, situados nas laterais externas dos carros, desprendiam, em violentas explosões, gases e fumaça escura. Estridentes fonfons de buzinas, assustando os distraídos, abriam passagem para alguns deslumbrados motoristas que, em suas desabaladas carreiras, infringiam as regras de trânsito, muitas vezes chegando ao abuso de alcançar mais de 20 quilômetros à hora, velocidade permitida somente nas estradas. Fora esse detalhe, o do trânsito, a cidade crescia mansamente. Não havia surgido ainda a febre dos edifícios altos; nem mesmo o “Prédio Martinelli” - arranha-céu pioneiro em São Paulo, se não me engano do Brasil - fora ainda construído. Não existia rádio, e televisão, nem em sonhos. Não se curtia som em aparelhos de alta-fidelidade. Ouvia-se música em gramofones de tromba e manivela. Havia tempo para tudo, ninguém se afobava, ninguém andava depressa. Não se abreviavam com siglas os nomes completos das pessoas e das coisas em geral. Para que isso? Por que o uso de siglas? Podia-se dizer e ler tranquilamente tudo, por mais longo que fosse o nome por extenso - sem criar equívocos - e ainda sobrava tempo para ênfase, se necessário fosse.
Os divertimentos, existentes então, acessíveis a uma família de poucos recursos como a nossa, eram poucos. Os valores daqueles idos, comparados aos de hoje, no entanto, eram outros; as mais mínimas coisas, os menores acontecimentos, tomavam corpo, adquiriam enorme importância. Nossa vida simples era rica, alegre e sadia. A imaginação voando solta, transformando tudo em festa, nenhuma barreira a impedir meus sonhos, o riso aberto e franco. Os divertimentos, como já disse, eram poucos, porém suficientes para encher o nosso mundo.
Anarquistas, graças a Deus. 11a ed. Rio de Janeiro: Record, 1986.

Para refletir !

terça-feira, julho 13

Crônica





São Paulo: as pessoas de tantos lugares

Milton Hatoum
À primeira vista, São Paulo assusta. Aos poucos, o susto cede ao fascínio, à surpresa da descoberta de muitos lugares escondidos ou ocultados numa metrópole da qual a natureza parece ter sido banida. Isto só em parte é verdade. Há vários parques e jardins — Aclimação, Villa-Lobos, Burle Marx, Água Branca e tantos outros —, sem contar o Ibirapuera, que simboliza uma promessa de urbanismo mais civilizado, ou de um processo urbano mais humanizado, interrompido pela ganância das construtoras e da especulação imobiliária em conluio com o poder público municipal.
Esse urbanismo desastroso e desumano é uma das características das cidades brasileiras, em que os bons arquitetos não participam da intervenção na paisagem urbana. Apesar das adversidades, um morador de São Paulo aprende a gostar da metrópole. Já quase não se vê o céu de Sampa, mas há bairros que são pequenas cidades, há ruas com um casario de uma outra época, com um ritmo de vida próprio, como se outro tempo resistisse ao cerco dos arranha-céus horrorosos e ao mundo das finanças e do consumo desenfreado.
Gosto de passear pelo Cambuci, Belenzinho, Penha; Brás, Mooca, Tatuapé e Santana ainda revelam muitos encantos, assim como a Estação da Luz e o Mercado Municipal. No mundo grandioso da metrópole, pode-se descobrir uma série de recantos: pequenas praças, um recorte de paisagem, um beco, um conjunto de casas neoclássicas, uma antiga vila operária, um boteco ou restaurante. Recantos que encerram um outro modo de vida, como se a metrópole fosse um palimpsesto a ser descoberto em cada andança. O oposto disso são edifícios dotados de clube e shopping centers, que separam seus moradores do resto da cidade, gerando uma nova forma de segregação do espaço, ainda mais radical que os condomínios.
Há pouco tempo, uma amiga carioca me disse que gostava cada vez mais de São Paulo. Quis saber por que. Porque fiz boas amizades na metrópole vizinha, ela disse.
Senti isso quando me mudei para cá em 1970. Morei num quarto de pensão na Liberdade. Um dos colegas dessa pensão era outro migrante, um rapaz de Londrina que passava o dia estudando música e que se tornou, além de um grande músico, um grande amigo: Arrigo Barnabé.
Entendi que São Paulo era uma meca para onde confluíam pessoas de todos os quadrantes, as latitudes e as origens; talvez seja este o maior encanto desta metrópole que une o culto ao trabalho com promessas de amizade. A diversidade étnica de São Paulo reitera a mestiçagem brasileira, uma das nossas maiores riquezas.
Não há um único paulistano que não reclame do trânsito, da poluição, da violência e das filas intermináveis, mas as relações de trabalho e afeto, que são formas poderosas de inserção social, servem de contrapeso ao caos e aos males da metrópole.
Milton Hatoum, 55, escritor, autor de Órfãos do Eldorado e Dois irmãos (ambos pela Companhia das Letras), entre outros títulos. Texto publicado na Revista da Folha, 25/05/2008.

Crônica


Pavão
Rubem Braga
Eu considerei a glória de um pavão ostentando o esplendor de suas cores; é um luxo imperial. Mas andei lendo livros, e descobri que aquelas cores todas não existem na pena do pavão. Não há pigmentos. O que há são minúsculas bolhas d’água em que a luz se fragmenta, como em um prisma. O pavão é um arco-íris de plumas. Eu considerei que este é o luxo do grande artista, atingir o máximo de matizes com o mínimo de elementos. De água e luz ele faz seu esplendor; seu grande mistério é a simplicidade.
Considerei, por fim, que assim é o amor, oh! minha amada; de tudo que ele suscita e esplende e estremece e delira em mim existem apenas meus olhos recebendo a luz de teu olhar. Ele me cobre de glórias e me faz magnífico.
Ai de ti, Copacabana. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1960.

Crônica


O amor acaba
Paulo Mendes Campos
O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania¹ da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.
1. No sentido literário, epifania é um momento privilegiado de revelação quando ocorre um evento que “ilumina” a vida da personagem.
O amor acaba - Crônicas líricas e existenciais. 2ª- ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.